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  • Writer: Jader Corrêa
    Jader Corrêa
  • May 26, 2021
  • 6 min read

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Hoje vi um vídeo, gravado em abril por uma câmera de segurança da estação da Sé do Metrô de São Paulo. Nele, um homem tenta empurrar três mulheres para os trilhos no momento em que uma composição chegava. Preso e internado em um hospital psiquiátrico por esquizofrenia, segundo boatos ele tencionava se matar após executar as três mulheres.

Ontem vi um vídeo de uma menina palestina implorando pelo irmão de dez anos que acabava de ser preso pela polícia israelense. A menina não conseguia entender como uma criança tinha de ser presa.

Semana passada vi um vídeo de um menino palestino catatônico sendo atendido em um hospital. Olho de criança não mente, e o que aquele menino viu era muito, muito grave.

Durante todo o mês de maio, um grupo de garimpeiros ilegais tentou expulsar um grupo de Yanomamis de suas terras, em Rondônia. Atiraram contra os indígenas, lançaram bombas, e nessa confusão duas crianças teriam morrido afogadas por se atirar no rio, em pânico. (Atualização: hoje puseram fogo na casa de uma liderança Munduruku, no Pará).

Desde o início do ano, três famílias - negras, pobres, periféricas - aguardam por notícias do paradeiro de três meninos que haviam saído para jogar futebol num campinho próximo de casa, na Baixada Fluminense (RJ), mas o que mais ocupa espaço no noticiário é a igualmente sórdida notícia da morte do menino de classe média alta por espancamento, perpetrado pelo padrasto com conivência da mãe, que não queria perder o status de esposa de político.

Ano passado eu vi uma notícia de que o próprio pai biológico de um também menino espancou o filho até o ponto irreversível porque o menino gostava de lavar vasilhas.

Grupos de pessoas por todo o país, desde o início da pandemia de COVID-19, seguem desobedecendo normas mínimas de biossegurança, impostas para tentar frear uma pandemia que já tirou mais de 450 mil vidas só no brasil, desconsiderando esse como um número assustadoramente subnotificado. Essas pessoas promovem festas clandestinas, aglomerações na rua sem a utilização de máscaras de proteção, e ainda agridem de forma virulenta (a Língua Portuguesa nos força a certas ironias) aqueles que pedem respeito às normas. Insistem em profilaxias com medicamentos comprovadamente ineficazes, defendem desmatamento e queimadas como se fossem fenômenos naturais, divulgam notícias falsas mas se recusam a acreditar em notícias comprovadas. À primeira vista, parecem pessoas submetidas a uma hipnose profunda e sem retorno.

Variações do Coronavírus, cepas e combinações destes surgem e circulam livremente pelo país. Não há controle sanitário em portos ou aeroportos, muito menos em fronteiras. Não há vacina suficiente para todos - as compras de lotes de vacina e insumos para produção local começaram atrasadas, o que resulta em um ritmo lento de produção e, consequentemente, de vacinação. Uma parte da sociedade até conseguiu obedecer à quarentena, ficando em casa, mantendo seus empregos trabalhando de forma remota, com reuniões e entrega de serviços por internet, mas o grande número de estabelecimentos fechados porque dependem da presença dos consumidores provocou um aumento exponencial numa taxa de desemprego que já era crescente. E o governo federal, gestão 2019/2022, já deu inúmeras mostras de não se importar com isso: pelo contrário, apostou em uma prática inexplicável de estímulo a uma "imunidade de rebanho" por acreditar que "quanto mais pessoas contraírem o COVID-19 mais rápido teremos imunização coletiva", recusou-se a fornecer auxílio para que os trabalhadores pudessem ficar em casa sem afetar a economia (sinto muito: auxílio de R$600,00 por quatro meses e R$150,00 por outros quatro, com um intervalo de mais quatro sem fornecê-lo, não pode ser considerado uma intenção séria de preservar a economia), estimulou a profilaxia ineficaz, e tentou desacreditar a eficácia das vacinas então produzidas, utilizando-se do mito (oh, deuses da ironia!) do comunismo como inimigo, entre muitas outras falas igualmente surreais, todas devidamente documentadas.

Enquanto isso, a sociedade brasileira continua seu hábito de se permitir hipnotizar por uma mídia corporativa e corporativista, pelas redes sociais que se utilizam de algoritmos para selecionar o que ela pode e/ou deve ver, pelas notícias falsas em aplicativos de mensagem, enquanto a alíquota de imposto sobre livros, por exemplo, sobem a ponto de inviabilizar a popularização da leitura. Tudo isso é apenas a superfície de um fenômeno que tem raízes profundas e tristes, cuja face horrenda é a tentativa de desmoralização de intelectuais do gabarito de Paulo Freire e Darcy Ribeiro. (Não vou me aprofundar nesta seara, ela merece uma postagem só para ela.)

Por aqui, por enquanto, estou me questionando como ser humano. Onde está a humanidade das pessoas? Para onde foram aquelas características que nos perfazem humanos? Porque e quando foi que os solidários, os compassivos, os generosos, os desprovidos de preconceitos, os justos, se transformaram em minoria absoluta dentro da sociedade?

Talvez você já tenha percebido que estou deprimido. Sim, é por isso que não consigo entabular sequer um arremedo de resposta a estas questões. Pelo menos, não uma resposta que não passe por uma análise bem pessimista dos tentáculos venenosos do capitalismo.

Em essência, o sistema capitalista se alimenta do consumo. Precisa do dinheiro circulando, importando ou não se existe lastro para qualquer montante em circulação. Para que o consumo seja sempre uma variável ascendente, uma das armas mais difundidas é o estímulo à individualidade. Para o capitalismo não é possível que haja telefones coletivos e públicos: cada um precisa ter o seu, às vezes até mais de um(1). Para o capitalismo não é interessante que haja transporte público cuja qualidade estimule seu uso frequente: cada habitante precisa ter seu carro, e que lutem aqueles que ficam presos em engarrafamentos. Para o capitalismo não é interessante que haja planejamento familiar: é necessário que haja cada vez mais competidores pela mesma quantidade de recursos, o que aqui se desdobra em mais uma faceta horrenda: a competição faz com que o valor da força de trabalho seja o menor possível, pois pessoas com fome aceitam qualquer salário para mitigar esse flagelo.

A individualidade, o consumo de bens individuais, a competição, todas essas características da sociedade contemporânea por trás das quais está o sistema capitalista não se difundem sozinhas. É preciso estímulo.

É onde entra o que se convencionou chamar de "indústria cultural". Essa "indústria" não é apenas o sinal de uma produção de bens culturais em larga escala. Ela é veículo de difusão de ideias, e nem sempre essas ideias estão em conformidade com conceitos como compaixão, empatia, solidariedade - em sua maioria, esses produtos desenhados para um consumo popular massificado (em que raciocínio e reflexão são perfeitamente dispensáveis) difundem ideias de exclusividade, superioridade e objetificação. Basta acompanhar qualquer letras de música do estilo r&b (ou rythm and blues), ou assitir a qualquer filme "blockbuster" americano em que o terrorista, o inimigo, é sempre o outro. Como auxílio, temos uma mídia sempre muito comprometida com os "ideais" de seus patrocinadores, e que reproduz ad infinitum esse modelo.

E como nos comprazemos com a hipnose! Não há descanso: termina um reality show, começa outro; o indivíduo naquela forma física erigida como "modelo" (no sentido de "molde"), cheio de fotos e vídeos se exibindo, publicados em redes sociais, é elevado à categoria de ser superior e acaba por se sentir em uma bolha de impunidade que o permite fazer e falar o que quiser, mesmo em detrimento de qualquer civilidade; os sites dedicados às informações completamente inúteis acerca de pessoas que pelo mistério de algum algoritmo galgaram alguns degraus de "celebridade" são os campeões de leitura na internet. Outro "mito", o do indivíduo (ou casal) bem sucedido, é explorado à exaustão. Ao mesmo tempo, disciplinas como a neurolinguística reforçam esse mito como se o sucesso ou o fracasso fossem "chaves" programáveis nos cérebros das pessoas. Revistas (hoje menos, mas até o final da década de 90 era o padrão) reafirmam continuamente qualquer inadequação a esse "modelo" como desprovida de saúde física e mental.

Paralelamente, ou por trás disso, a Educação se tornou o divisor de águas dessa sociedade individualista. A Educação Pública é desvalorizada, sucateada e desestimulada a ponto de ser destinada apenas àqueles que serão formados para servir, enquanto a educação privada é o "selo de garantia" de que um indivíduo será bem formado e capaz de liderar e gerir a sociedade. E é ali, na educação privada, que os ideais do sistema capitalista são difundidos com menos resistência e menos disfarce: os indivíduos são convencidos que estão ali porque merecem. Na Educação Pública, o aprendizado para uma consciência social, ou a equiparação com a "qualidade" do ensino privado, são jogados no lixo pois uma massa mal-formada, com menos resistência a comandos e muito, muito menos dotada de informação é necessária para a manutenção desse "modelo".

Esse conjunto de fatores é o amálgama que literalmente extirpou a empatia e a compaixão em uma grande maioria de indivíduos que ainda fingem que "fazem parte" da sociedade; é o que os dessensibilizou a ponto de considerarem apenas a si mesmos como "a sociedade", "o povo", e se comportarem individualmente em detrimento do coletivo e, nota surreal aqui, se comportarem como um coletivo em decisões que deveriam ser individuais.

É muito triste e surreal testemunhar esse movimento. Parece que não vai ter fim. Sei que esse movimento terá seu termo (todas as coisas tem), mas parece infinito enquanto dura. É preciso ter esperança, é claro, mas em dias como os de hoje, em que notícias ruins, já em abundância costumeira em dias "normais", parecem impactar com força exponencialmente maior, e mesmo uma tristeza, reconhecidamente finita, parece não arrefecer.

Sigamos, apesar.


Referências

(1) https://portal.fgv.br/noticias/brasil-tem-424-milhoes-dispositivos-digitais-uso-revela-31a-pesquisa-anual-fgvcia


 
 
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