O QUE SIGNIFICA VIVER #003 - O QUE NOS UNE
- Jader Corrêa

- Apr 23, 2024
- 7 min read

Está a cada dia mais difícil de negar: a religião tornou-se um instrumento de poder. Talvez tenha sido assim desde sempre, desde seu advento, mas parece que só agora está havendo um certo movimento de "despertar" os olhares para essa percepção.
Deixando bem claro desde já, não sou ateu: sigo atento às subjetividades da ação de ter Fé. Peço para mim a proteção dos poderes da Natureza, já identifiquei no Pai Nosso uma harmonização dos sete chakras, visto azul nas terças-feiras e branco nas sextas, medito recitando mantras, sou seguidor de duas gurus indianas.
Partindo desse ponto, deixe-me pontuar uma questão pragmática.
Religião (segundo o dicionário Aurélio, edição 1986, que é a que tenho), substantivo feminino, vem do latim religione (religiõ). Significa "crença na existência de uma força sobrenatural, considerada como criadora do Universo, e que como tal deve ser adorada e obedecida"; "manifestação desta crença por meio de uma doutrina e ritual próprios, que envolvem preceitos éticos", e ainda "qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve uma posição filosófica, ética, metafísica e de princípios". Em verbetes consultados na internet, obtive um pouco mais de abrangência, tendo o radical latino original religiõ recebido, nos primórdios da "civilização" ocidental, a atribuição de um "senso de consciência, de direito e de obrigação moral para com qualquer coisa".
Entre o conceito antigo e o moderno, muita água rolou por baixo dessa ponte. Um pouco mais adiante na História (mais precisamente em 25 de setembro de 1555, na promulgação da bula Paz de Augsburgo), vemos o termo religião sendo já empregado para separar atribuições e direitos eclesiásticos (da igreja) das atribuições e direitos mundanos (civis). Em palavras mais simples, no momento em que essa separação foi cristalizada, temos aí o primeiro sinal das verdadeiras intenções da igreja: colocar-se acima (por estar ao lado dessa Força Criadora do Universo) dos civis, os mundanos. Trata-se, portanto, de um autoposicionamento em uma perspectiva de PODER. No caso das (não tão) diferentes religiões existentes no mundo, sendo a maior delas a igreja católica (bem como suas derivativas neopentecostais), estamos falando de um PODER ABSOLUTO e INQUESTIONÁVEL.
Opa. Nem tão absoluto assim, nem tão inquestionável assim. Por favor.
O gatilho para este artigo veio de onde eu menos esperava: do Bhagavad Gita, um dos dezesseis capítulos do Mahabharata, o poema épico (100 mil estrofes!) que é a base da filosofia hinduísta. No capítulo 02, Resumo da Gita, inicia-se uma série de argumentos a respeito da perenidade da alma, ou reencarnação do espírito. A partir da estrofe 13, desenvolvendo a ideia da imortalidade da alma, o Supremo Senhor (Krishna) insinua a Árjuna (o guerreiro que estava em dúvida se ia à guerra ou não) a noção de "pecado", ou punição por incorrer em rebeldia diante dos "desígnios divinos". Ou seja: o deus Krishna aconselha aquele humano, nascido em uma casta de guerreiros, que ele não deve questionar a casta em que nasceu para não desobedecer seu deus e o que este designou para ele.
Será aqui, num texto escrito há mais de três mil anos, o local exato do nascimento do domínio do Estado sobre o Indivíduo? Será que foi aqui, criando-se e aplicando-se um conceito tão abstrato que ninguém, absolutamente ninguém, conseguiu comprovar, que nasceram ideias tão desconcertantes que conseguem cobrir seu verdadeiro intento?
Vamos e venhamos - não existe nem um texto escrito por qualquer força da Natureza. Por mais sublime que seja a justificativa (obra do Espírito Santo, por exemplo), por mais bem-intencionadas que sejam as palavras, a escrita de qualquer texto, seja registro de uma tradição oral ou criação direta, sempre perpassará cérebro, braço e dedos de um ser humano. Não existe outro meio: qualquer texto, oral ou grafado, será sempre obra humana. A partir disso, considerando que a lenta organização dos grupos gregários em comunidades sociais acabou por engendrar entre seus membros noções de dominação e poder, foram criadas, por tentativa e erro, diversas estratégias para obtenção e manutenção desse poder. Então, o divino (e mais tarde, no caso da igreja católica, o eclesiástico), sendo um construto social, é uma das estratégias mais bem-sucedidas, e tem em seu cerne uma ordenação social para distribuição heterogênea de poder - no caso do Bhagavad Gita, a aceitação imposta e inconteste de uma posição social.
Abrindo o leque, ampliando o alcance da discussão, temos o Budismo e o Espiritismo Kardecista, filosofias cujas premissas principais são a compaixão e o amor ao próximo. Ah, como seria maravilhoso se um grupo religioso (evitarei aqui, por enquanto, outros termos) se limitasse apenas a esses dois conceitos! A Humanidade teria grande chance de se desenvolver em paz. No entanto, nessas duas filosofias o conceito de aceitação de uma determinada característica (seja ela física, comportamental, e principalmente social) é frequentemente aplicado entre seus membros, com a justificativa de que ou aquela característica é um pagamento pelo que se fez em uma vida anterior, ou uma dívida (Karma) com a qual a próxima encarnação deverá arcar.
Recentemente assisti a uma série documental sobre a lenda de Moisés. Especialistas de três (sim, TRÊS!) livros sagrados, o Corão, a Torá e a Bíblia, comentaram sobre esse mito, mostrando que nos três livros há referências ao período em que os judeus foram escravos no Egito e seu lento processo de libertação. Eu já sabia que o Antigo Testamento (Bíblia) é uma "adaptação" dos quatro primeiros livros da Torá, mas tomar conhecimento de que pelo menos a lenda de Moisés também faz parte do Corão me surpreendeu, e muito.
Essa surpresa me fez deslindar um emaranhado de fios e me proporcionou juntar algumas pontas soltas.
Você conhece a lenda de Deucalião e Pirra? Na mitologia grega, Deucalião era filho de Prometeus, um dos Titãs. Tinha por esposa a virtuosa Pirra. Um belo dia, Zeus enfureceu-se contra os humanos e sua violenta iniquidade e resolveu destrui-los. Chamou Poseidon, o deus das águas, e juntos planejaram resetar a Humanidade através de um dilúvio. Prometeus soube desse plano e preveniu seu filho Deucalião, e o orientou que construísse uma arca. Vieram as águas, os humanos foram exterminados, mas Deucalião e sua mulher foram poupados pelo estratagema aconselhado por Prometeus. Depois que a fúria dos deuses se acalmou e as águas baixaram, Deucalião e sua mulher ficaram responsáveis por repovoar a terra.
Essa lenda soou-lhe familiar? Pois é. Não é de se questionar como alguém que professe uma determinada religião seja capaz de dizer que seu livro sagrado é o único que deve ser lido e respeitado, e que a Entidade Suprema nele descrita deve ser a única à qual se deva seguir e obedecer sem hesitação e questionamento?
Esses Livros Sagrados não foram escritos por mãos divinas. Isso é fato. Os donos das mãos e braços e cérebros que os escreveram podem até se arvorarem de ter trabalhado por inspiração divina, mas este é um conceito bem amplo e vago, concorda? E aí temos dois fatores preponderantes: primeiro, temos de ter em mente que essas lendas (sim, são lendas, discuto o termo daqui a pouco) foram elaboradas a partir de uma tradição oral; é pouco provável que aquele que transmite esses conhecimentos em uma determinada época está reproduzindo fielmente, ipsis litteris, o que escutou. Empreguemos aqui a parlenda "quem conta um conto aumenta um ponto" para termos em perspectiva o segundo fator: a história oral pode se adaptar ao contexto em que ela está sendo transmitida. Algo como suprimir um personagem que naquela época seria visto com maus olhos ou criar outro que se adeque melhor; ou adaptar os fatos concernentes a um ou mais personagens para que a audiência fosse capaz de compreender melhor a moral do que está sendo transmitido.
Retirado esse véu por algo que poderíamos chamar de questionamento científico, é impossível negar que esses Livros Sagrados são belíssimos. Sua estrutura poética, suas metáforas de moral elevada, nos conduzem a nossa própria elevação espiritual e, por que não dizer, à nossa própria evolução. E por que são metáforas, ou seja, histórias criadas com a intenção de transmitir uma mensagem por meio de símbolos não exatamente ligados ao real; e pelo fato de não haver provas concretas da existência de seus personagens e fatos, é preciso dizer que são lendas. Belas, comoventes, edificantes, moralizantes, mas lendas.
Por que é necessário crer que esses personagens são (ou foram) reais? Não basta identificar, absorver e aplicar na vida a lição aprendida através da metáfora? Será que compreender o mundo precisa passar por uma submissão ideológica? Em outras palavras: por que não podemos pensar e compreender o mundo por nossa própria conta?
No caso de Moisés, o documentário insiste em afirmar sua existência real. Considerando que é uma história constante em três dos maiores livros sagrados da humanidade, em que cada um tem sua versão, fica difícil de se submeter a esse paradigma. Moisés pode ser, por exemplo, o "ajuntamento" de vários personagens que lutaram pela abolição da escravatura dos judeus, porque foram mais de quatrocentos anos de jugo. A Terra Prometida, que sempre está "no horizonte", pode ser interpretada como outra metáfora composta poeticamente para justificar o nomadismo das tribos de Israel, este sim, amplamente documentado e estudado por historiadores e arqueólogos.
Fé e Religião são conceitos que estão, pouco a pouco, se dissociando. E considero irreversível esse movimento. Na contramão, no entanto, felizmente vemos manifestações concretas que reabilitam nosso conceito de fé - exemplos de compaixão e amor ao próximo, combate ao extremismo e à cegueira, convivência pacífica entre líderes de práticas religiosas diferentes. Infelizmente, são exemplos pontuais e raros em nossos dias. O conhecimento e a reflexão sobre os livros sagrados estão cada vez mais estreitos e submetidos a uma interpretação que sempre vai considerar sua visão particular a única merecedora de crédito e subserviência cega.
É preciso trazer de volta o sentido primordial dos Livros Sagrados: sua beleza poética e suas lições mais belas. Com elas se pode aprender e evoluir, sem se deixar levar pelas entrelinhas excludentes ditadas pela visão de outra pessoa. Fé é uma das coisas mais bonitas do mundo. A religião está se tornando o oposto.




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